A cidade ainda não acordou. O silêncio do lado de fora é
mais espesso. Dobrados sobre os escuros dormem os girassóis. Eu estou atoando
nas ruas moda moscas sem tino. O sol ainda vem escorado por bando de
andorinhas. Procuro um trilheiro de cabras que antes me levava a um porto de
pescadores. Desço pelo trilheiro. Me escorrego nas pedras ainda orvalhadas.
Passa por mim uma brisa com asas de garças. As garças estão a descer para as
margens do rio. O rio está bufando de cheio. Há bugios ainda nas árvores ribeirinhas.
Logo os bugios subirão para as árvores da cidade. O rio está esticado de rãs
até os joelhos. Chego no porto dos pescadores. Há canoas embicadas e mulheres
destripando peixes. Ao lado os meninos brincam de cangapés. Das pedras ainda
não sumiram os orvalhos. Batelões mascateiros balançam nas águas do rio.
Procuro meus vestígios nestas areias. Eu bem recebia as pétalas do sol em mim.
Queria saber o sonho daquelas garças à margem do rio. Mas não foi possível.
Agora não quero saber mais nada, só quero aperfeiçoar o que não sei.
(Memórias Inventadas
– As Infâncias de Manoel de Barros)
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