quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Corumbá revisitada




A cidade ainda não acordou. O silêncio do lado de fora é mais espesso. Dobrados sobre os escuros dormem os girassóis. Eu estou atoando nas ruas moda moscas sem tino. O sol ainda vem escorado por bando de andorinhas. Procuro um trilheiro de cabras que antes me levava a um porto de pescadores. Desço pelo trilheiro. Me escorrego nas pedras ainda orvalhadas. Passa por mim uma brisa com asas de garças. As garças estão a descer para as margens do rio. O rio está bufando de cheio. Há bugios ainda nas árvores ribeirinhas. Logo os bugios subirão para as árvores da cidade. O rio está esticado de rãs até os joelhos. Chego no porto dos pescadores. Há canoas embicadas e mulheres destripando peixes. Ao lado os meninos brincam de cangapés. Das pedras ainda não sumiram os orvalhos. Batelões mascateiros balançam nas águas do rio. Procuro meus vestígios nestas areias. Eu bem recebia as pétalas do sol em mim. Queria saber o sonho daquelas garças à margem do rio. Mas não foi possível. Agora não quero saber mais nada, só quero aperfeiçoar o que não sei.

(Memórias Inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros)

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